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O Gambito brasileiro

O Gambito brasileiro

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“Diziam: tu vais chegar aonde com este jogo? Olha aonde cheguei”, gaba-se Cibele Florêncio, 25 anos, agora conhecida como ‘a menina do xadrez’ ou ‘gambito brasileiro’ – em alusão à minissérie “O Gambito da Rainha”, da Netflix, do qual é fã. “Já assisti três vezes”. Como a personagem Beth Harmon, Cibele compartilha a paixão pelo xadrez e o desejo de viver do esporte.  Filha de mãe solteira e com seis irmãos, a jovem aprendeu a jogar xadrez aos nove anos em um projeto da prefeitura de Macaíba/RN. Na adolescência, disputou torneios locais, mas depois abandonou as competições por causa da rotina puxada do trabalho como diarista. Nesse período, matava a saudade das peças e do tabuleiro em jogos noturnos com a irmã ou em aplicativos de celulares. Recentemente, a potiguar deu um passo importante em direção ao sonho de infância de brilhar como enxadrista. Em dezembro passado, Cibele teve a vida transformada após sagrar-se vice-campeã brasileira de xadrez e se credenciar para o Mundial disputado no mesmo mês em Varsóvia, na Polônia.

Mais difícil do que garantir a vaga no torneio internacional foi conseguir o aporte financeiro para a viagem e a estadia de seis dias na cidade polonesa. De volta ao Brasil, Cibele viu a história virar notícia na imprensa nacional e internacional. O assédio é tanto que atualmente ela reserva os dias de folga para atender aos pedidos de entrevista.  “Fui contratada pelo hospital que me patrocina e trabalho em dias alternados. Nas folgas faço as entrevistas e reuniões para discutir projetos e oportunidades”, conta, empolgada com a nova rotina. Não menor é sua empolgação com o patrocínio que fechou e a bolsa de estudos que ganhou para cursar Educação Física em uma universidade particular.

Como foi aprender a jogar xadrez? 

Desde o início me dei bem, mas na época não levava tão a sério porque era daquelas que gostava de fazer arte. Só que quando o professor explicava, prestava atenção. Ele fazia perguntas sobre os lances, eu sabia a resposta, mas por ser tímida tinha vergonha de responder. Então falava as respostas para as minhas amigas, elas respondiam e o professor falava: “muito bem, está certíssimo”. Foi assim que percebi que estava entendendo o jogo. 

Lembra do primeiro torneio? 

O professor conversou com os pais porque queria levar os alunos para um torneio em Natal. Minha mãe me liberou e fui vice-campeã. A partir dali sempre que tinha torneio, o professor me colocava para jogar. O projeto me ajudava muito porque o professor me busca e levava em casa, dava alimentação e pagava as inscrições.

Por quanto tempo frequentou o projeto? 

Dos nove aos 16 anos. Foi neste período que mantive uma rotina de torneios. Depois o projeto acabou por questões políticas. O professor desistiu de manter o projeto e todo mundo debandou até que só eu fiquei. Foi daí que começou a peleja que todo mundo diz: ‘a menina é guerreira mesmo’. Sem o projeto, passei a baixar aplicativos no celular para jogar. 

E continuou a participar de torneios? 

Quando dava eu pagava a inscrição e ia embora, com a fé e a coragem. Pegava ônibus e dormia na casa de amigas. Foi bem difícil, mas ia levando. Aí veio a pandemia e não tive condições de jogar mais. Fiquei parada por dois anos. No ano passado, procurei o presidente da federação e perguntei quando ia ter um torneio. Estava com muita vontade e saudade de jogar. 

Foi a partir desse torneio que conquistou a vaga para o Brasileiro? 

Joguei primeiro um torneio local e fui campeã. Me classifiquei para o Estadual e ganhei também. Depois veio o Brasileiro, que fui vice-campeã e me classifiquei para o Mundial. Para fazer a inscrição no Brasileiro pedi ajuda a minha patroa. Disse a ela: ‘Ana Lígia, vai ter um torneio importante e eu queria muito jogar’. Aí ela perguntou: ‘quanto é?’. Respondi que era R$ 150 e ela me deu.

Sua patroa sabia que você joga xadrez?

Não. Sou tímida. Só vou responder se me perguntarem, caso contrário, não falo nada. Até então nossa vivência era de patroa e faxineira. Ela não sabia detalhes da minha vida. Hoje a chamo de madrinha. Ela ficou muito feliz quando contei que tinha sido vice-campeã. E logo depois o presidente da Federação disse que eu tinha sido classificada para o Mundial. Voltei lá e disse: ‘Ana Lígia, fui classificada para jogar o Mundial na Polônia’. Daí começaram as festividades e uma corrida atrás de dinheiro.

Entre o Brasileiro e o Mundial houve um intervalo de apenas dez dias. Como foi ajeitar tudo em tão pouco tempo?

Estava correndo contra o tempo para fazer o passaporte e juntar o dinheiro. Formou-se um mutirão para me ajudar. Meus amigos sugeriram uma vaquinha virtual. Mas a vaquinha não deu em nada. Tinha muita gente compartilhando, mas dinheiro nada. Minha patroa, que é médica, enviou mensagens nos grupos dela e aí caiu um dinheirinho. Só que pouco. Iniciei o processo do passaporte, mas cadê o dinheiro para viajar? Já estava triste e abalada quando o seu André, marido da Ana Lígia, sugeriu que eu fosse na rádio local contar a minha história e apelar por patrocínio. Ele combinou de ir comigo às 7h30 do outro dia. De manhã bem cedinho ele ligou e eu estava dormindo porque tinha chorado muito à noite. Ele disse: ‘Cibele, cadê você mulher? Já está vindo?’. Respondi: ‘Seu André, eu não vou. Não estou com fé’. Mas ele me incentivou e disse: vem embora e vamos dar um xeque-mate’. Foi algo de anjo, sabe? Me arrumei apressadíssima e fui.

Foi por meio deste depoimento que conseguiu patrocínio? 

Sim. Como cheguei atrasada tinha poucos minutos para contar a minha vida. O Marcelo Cascudo estava indo para o trabalho escutando a rádio e escutou a conversa. Ele ficou emocionado porque a filha dele se chama Cibele também. Enquanto eu ainda estava na rádio, ele mandou um recadinho. Depois que acabou a entrevista, ele ligou e pediu que fosse até o hospital onde trabalha. Meu patrão me acompanhou até lá e quando chegamos na recepção já me perguntaram se eu era a menina do xadrez. Numa sala estavam me esperando os advogados e sócios. Eles me perguntaram se tinha pedido ajuda à prefeitura. Disse que sim, mas que não me receberam nem deram retorno. O seu Marcelo disse que eles iam me patrocinar. Menina, aí comecei a festejar com o meu patrão. Lá mesmo a gente começou a olhar a questão da inscrição e ligar para a Polícia Federal para saber do passaporte, que ainda não estava pronto. Fui atrás de roupas de frio. Isso tudo faltando dois dias para a viagem.

Pensou em desistir da viagem? 

Fiquei preocupada porque não falo nada de inglês. Pensava: ‘meu Deus, como vou me virar? E se eu me perder?’ Pensava que podia acontecer coisas ruins comigo. Perguntava para os amigos se eles viajariam se estivessem no meu lugar. Alguns respondiam que não sabiam. Outros diziam que sim porque era algo que poderia mudar a vida. Ficava escutando e no dia que parei para decidir se ia ou não, pesou a força da rede de apoio que se criou ao meu redor. 

Que avaliação faz desta experiência? 

Foi uma experiência única. Fiquei seis dias em Varsóvia, na Polônia, e foi maravilhoso tudo o que vivi lá. Tiveram alguns vexames, porque eu nunca tinha viajado, né? Mas fiquei bem ligada, prestava atenção em tudo e desenrolei muito bem. 

Como foi competir com atletas de diferentes países?

Foi bem legal, apesar do vexame de não entender o que elas falavam. Elas podiam estar me xingando e eu não saberia. Era um completa desconhecida, ficava sentadinha sozinha, só olhando. Eles me olhavam e deviam pensar: ‘de onde vem esta criatura?’ 

O que mudou na sua vida após o Mundial? 

Fui muito mal na competição, perdi quase todos os jogos. Então para mim eu voltaria e continuaria sendo a Cibele do interiorzinho. Mas desde que voltei não tive um dia sem alguém me procurar. No dia seguinte o celular não parava, eram os amigos querendo saber do Mundial, jornalistas querendo me entrevistar. Também comecei a trabalhar no hospital, que agora é meu patrocinador. Trabalho um dia das 7h às 19h e no outro folgo. O dia da folga é para fazer entrevistas e lives, reuniões para discutir projetos, negociar patrocínios, entre outras coisas. 

Pretende seguir a carreira de enxadrista? 

Sim, quero aproveitar as oportunidades que nunca tinha tido. Ainda preciso de patrocínios para bancar as viagens e as hospedagens. Também gostaria de ter ajuda para um projeto social de xadrez. Recebo mensagens de mães dizendo que queriam que eu ensinasse xadrez para os filhos ou perguntando se dou aula online. Se conseguir um patrocinador para abrir um projeto, quero ajudar a minha comunidade porque lá tem muitos talentos que, assim como eu, não têm condições. Quero viver do xadrez. 

O xadrez não é muito praticado no Brasil. Espera popularizar a modalidade com a sua história? 

Sim, porque a gente só crê quando vê. Eu sei que um joguinho de pecinhas pode mudar a sua vida. Quero que outras pessoas enxerguem isso. Há outras meninas e meninos que jogam e podem chegar aonde cheguei. Quero transformar a vida de muita gente assim como a minha se transformou.

O que diria para quem tem sonhos e encontra barreiras para concretizá-los? 

O negócio é acreditar sempre. Foram tantos tropeços que passei na vida. Depois que o projeto terminou ficou tudo mais difícil. Não botava tanta fé que chegaria longe com aquele ‘joguinho’. Só sabia que gostava dele, mas sempre tive esperança, apesar de todas as dificuldades.

Falta de patrocínio é um problema recorrente aos atletas brasileiros. O que diz aos empresários que recebem pedidos de patrocínios? 

Para eles acreditarem nas pessoas que estão pedindo ajuda. Se a gente vai atrás, é porque se garante em alguma coisa, é bom naquilo. Diria para eles olharem com atenção, dar uma chance porque isso transforma vidas. 

Voltar a disputar um Mundial está nos seus planos? 

Está sim, e vou trabalhar muito este ano para conseguir uma vaga e chegar com mais experiência. 

E tem outros projetos?

Depois que voltei do Mundial se abriu um leque de oportunidades. Estou analisando as propostas. No momento estou em conversa para ser professora de xadrez numa cidadezinha aqui perto. Também já pensei em comprar tabuleiros para começar a dar aula para ganhar dinheiro. Outra ideia é usar as redes sociais para divulgação e criar uma plataforma de aulas online. Sou muito boa para dar aula, mas para fazer vídeos ainda sou tímida.